A Amizade

 

    As relações íntimas são um tipo particular de interação social que apresenta caraterísticas próprias. Se pensarmos nas relações que estabelecemos com os outros, reconhecemos que existem diferentes níveis de intimidade. Há autores que defendem que as relações humanas também se caraterizam pelo seu nível de intimidade. Podemos ter relações ocasionais, de amizade, de namoro, de casamento, etc. Nestas relações varia o grau de intimidade. A intimidade distingue a relação que acabámos de estabelecer com um colega de outra escola com quem vamos trocar material de exame, de um colega de turma de quem gostas, do teu melhor amigo ou amiga, do teu namorado. Por exemplo, com o melhor amigo partilhamos o fundamental das nossas emoções e pensamentos, porque sentimos a relação como segura e confiante, porque sabemos que somos escutados e escutamos. A relação pais/filhos é a primeira relação de intimidade dos seres humanos que marcas as relações futuras.

    Contudo, também constatamos que nem todas as pessoas mantêm relações de intimidade com os outros. Efetivamente, as pessoas distinguem-se pela possibilidade de abrirem mais ou menos disponíveis para partilharem sentimentos, afetos e emoções. Por isso, pode afirmar-se que a intimidade tem uma dimensão relacional e uma dimensão pessoal. Esta última ligada à personalidade das pessoas, à sua história pessoal e ao contexto de vida em que se encontra. Há pessoas muito introvertidas que têm dificuldade em partilhar com os outros, mesmos os mais próximos, aspetos privados da sua vida, dos seus afetos. Noutros casos, as pessoas podem estar a viver condições psicológicas que afetam as suas relações íntimas. Percebemos facilmente que, por exemplo, uma pessoa deprimida terá dificuldade em interagir com os outros e, portanto, em estabelecer ou manter relações de intimidade.

    A intimidade é uma experiência que implica uma forte vivência, um grande envolvimento e uma comunicação profunda. Woolams define intimidade como: “…a partilha de sentimentos, pensamentos e experiências numa relação de abertura, sinceridade e confiança”.

Aliás, os últimos termos da definição – abertura, sinceridade e confiança – são, de facto, as condições de uma relação de intimidade. Nas relações de íntimas que estabelecemos, reconhecemos diferenças. Uma das áreas de investigação da psicologia social tem sido procurar identificar diferentes dimensões de intimidade. Assim, pode-se referir:

 

-  Intimidade social – experiência de ter amigos;

-  Intimidade sexual – experiência de partilhar o contato físico e sexual;

-  Intimidade emocional – experiência de proximidade de sentimentos, o encontro da compreensão e apoio;

-  Intimidade intelectual – experiência de partilhar ideias e conceções do mundo e da vida;

-  Intimidade lúdica – experiência de partilhar tempos livres e de lazer e gostos.

    É de notar que esta distinção não implica a presença de todas estas dimensões numa relação íntima. As relações interpessoais íntimas, como as que envolvem, geralmente, duas pessoas ou um casal, distinguem-se também por algumas outras caraterísticas: são relações intensas, duradouras, frequentes, em que é privilegiada a comunicação de sentimentos, crenças, dados pessoais e afetos. Partilhamos com o outro o nosso passado, comentamos o nosso presente e projetamos os nossos planos para o futuro.

    Nas relações íntimas estão envolvidas algumas componentes que são elementos distintivos de outros tipos de relação. As interações verbais dos nossos pensamentos e emoções são, de facto, um elemento fundamental. É através da conversa que partilhamos com o outro as nossas emoções, sentimentos e pensamentos mais íntimos e confidências. Aquele que ouve é também o elemento essencial da interação, até porque os papéis se trocam.

    Para além desta forma de comunicação que tem a palavra como meio, como instrumento da interação, há as interações não verbais que, em muitos casos, manifestam de forma mais verdadeira os nosso sentimentos e emoções e, portanto, as nossas relações de intimidade: aproximidade física, acariciar, tocar, apoiar-se no corpo do outro, são elementos importantes de manifestação da intimidade.

    A forma como se sorri, como se olha para o outro, a cumplicidade dos olhares, os gestos, a forma como se coloca a cabeça, são outras formas de expressão e comunicação entre íntimos. As interações não verbais são emitidas e interpretadas por cada um deles.

    É possível, portanto, através das atitudes posturais, das expressões faciais, dos gestos, dos olhares, avaliar o grau de intimidade de dois interlocutores.

    Um outro aspeto que tem sido objeto de estudo é o papel do contexto social na compreensão da intimidade. A forma como se exprimem e exercitam as relações íntimas varia com o tempo e o lugar. Poderíamos dizer que, nas sociedades ocidentais, as alterações relativas à situação da mulher produziram grandes alterações nas interações sociais em geral e nas de intimidade em particular. As relações de intimidade, sendo inerentes à própria condição humana, estão marcadas pelas convenções sociais.

    Analisando as duas expressões da intimidade que, embora não sejam as únicas, são as mais significativas e as mais estudadas: a amizade e o amor. Nos últimos tempos, ocorrem novas formas de expressão de intimidade como as que acontecem nos chats e em outros registos que têm por meio da internet. A novidade do fenómeno ainda não permitiu o desenvolvimento de estudos aprofundados.

    Todos temos amigos, o que não torna mais fácil a definição de amizade. Procuramos, por isso, fazer uma lista de caraterísticas que a distinguem de outro tipo de interações sociais. A amizade envolve alguns elementos fundamentais para a sua definição.

    Assim, uma relação de amizade é uma relação:

-  Pessoal;

-  Informal;

-  Voluntária;

-  Que implica reciprocidade;

-  Que envolve atração pessoal;

-  Que facilita os objetos que os envolvidos querem atingir;

-  Positiva;

-  De longa duração.

    Com certeza que poderemos acrescentar mais caraterísticas à lista, mas estas são essenciais para de definir amizade. Alguns autores consideram que a sexualidade pode, ou não, estar presente nas relações de amizade.

    É claro que são diferentes os tipos e os graus de intimidade, de afeto, de partilha e de apoio mútuo. Por isso, é que falamos do nosso melhor amigo distinguindo o grau de amizade: faz parte das amizades desenvolvidas que se distinguem das amizades superficiais. Neste caso, são relações que se mantêm porque são, de algum modo, compensadoras, vantajosas para ambas as partes.

    Reconhecemos que há um conjunto de caraterísticas que consideramos essências numa relação de amizade. Não existe, no entanto, um padrão único, válidos para todos, como se compreende facilmente. Contudo, há qualidades que ocorrem com mais frequência.

    Da análise de dados relativos a um questionário, podemos constatar que as caraterísticas mais valorizadas numa relação de amizade são a confiança, lealdade, carinho e apoio. Estas qualidades envolvem reciprocidade: há expectativas relativamente aos amigos que, se forem defraudadas, podem pôr em causa a relação de amizade.

    Michael Argyle foi um psicólogo britânico que deu um grande impulso à psicologia social e que, entre outras temáticas, abordou as interações sociais, procurando conceptualizar as suas componentes. Entre as várias temáticas, estudou as expectativas em vários contextos, entre elas as que estão subjacentes às relações de amizade. Selecionou cinco, que considerou nucleares numa relação de amizade:

-  Defender o amigo quando este está ausente;

-  Partilhar com eles os acontecimentos e as ocorrências relevantes;

-  Apoiá-lo emocionalmente sempre que precise;

-  Confiar no outro e ser verdadeiro;

-  Apoiar o outro de forma espontânea e voluntárias, sempre que necessário.

    Assim como reconhecemos que as relações de amizade correspondem a um importante suporte psicológico, a sua rutura é um factor de grande perturbação. O significado de uma rutura não tem sempre o mesmo significado, porque as amizades são diferentes umas das outras e variam de importância ao longo da vida.

    As amizades variam segundo um conjunto de factores. Irei referir, de forma breve, algumas circunstâncias que distinguem as relações de amizade:

- A idade: em qualquer idade, as amizades têm um papel muito importante no desenvolvimento e equilíbrio da pessoa. Todavia, manifesta-se de formas distintas nos diferentes estádios do ciclo de vida. Na infância, os amigos são um fator decisivo no desenvolvimento cognitivo e socioafectivo, sendo elementos fundamentais no processo de construção da autonomia. Na adolescência, os amigos têm um papel predominante no processo de socialização. É no grupo de pares que se escolhem os amigos, sendo talvez a fase da vida em que as amizades têm mais importância. Nos adultos, as amizades têm um papel diferente, deixando de ter um predomínio tão grande. Enquadrados profissionalmente, os amigos perdem o carácter central das relações das anteriores idades. São, muitas vezes, os colegas de trabalho ou de outra atividade paralela, caracterizando-se por um menor grau de intimidade.

- Género: considera-se que entre as mulheres dominam mais a intimidade e as confidências do que entre os homens. Para estes a amizade é mais voltada para a atividade profissional ou outra, do que para a partilha de emoções.

- Contexto social: os valores que regem a amizade variam de cultura para cultura, a época, etc. Por exemplo, no século XIX prevaleciam valores mais associados ao heroísmo, à coragem, ao dever. Contudo, hoje os padrões do que é ser amigo são outros (confiança, intimidade, partilha de interesses).

- Características individuais: para umas pessoas é mais importante ter amigos, enquanto que para outras é menos relevante; para uns é mais fácil estabelecer relações de amizade baseadas na partilha de emoções, sentimentos e confidências, para outros não; para alguns é fácil iniciar relações de amizade; etc.

 

    Mais que sustentada por um bom sentimento, a amizade comporta uma ética. “A amizade é uma forma de amor” (Alberoni, 1993). Não um amor qualquer, mas um processo adulto e sofisticado (Gikovate, 1996), elaborado, revisado e reforçado pelas circunstâncias que a vida nos ensina. É um vínculo que faz bem aos envolvidos, fornecendo o caminho para a sabedoria e a felicidade, tal como pensavam os gregos antigos. Também as recentes pesquisas indicam os que possuem amigos como sendo mais saudáveis, mais felizes ou, pelo menos, levando a vida com melhor sentido.

    Sócrates, no seu tempo, já sinalizava para seus discípulos que “os maus não podem amar uns aos outros”. Esse tipo de vínculo só pode existir entre homens de bem e entre homens dedicados à sabedoria (Cícero (1997), que, como sabemos, nada tem a ver com aqueles que são dedicados ao conhecimento científico ou à luta por uma causa política ou ideológica.

    Para além da questão ética, Descartes distinguiu a afeição e a devoção da amizade. É afeição – e não amizade – quando apreciamos algo, por exemplo, uma flor, uma ave, um animal. “Apreciamos neles algo menos que a nós mesmos”. Devoção é oposto da afeição, isto é, temos devoção a alguém que ocupa uma posição superior a nós. Temos devoção aos nossos pais, a um governante, a um rei, a Jesus Cristo, a um ídolo do momento, a um país, a uma causa.     É notória a devoção aos ídolos como Elvis Presley ou a Che Guevara, décadas depois da sua morte. E pode parecer ridícula a devoção a falsos ídolos, que logo serão esquecidos na história.

    No mundo oriental antigo, a amizade também era muito valorizada. Confúcio (551-479 a.C.) enumerava cinco tipos fundamentais de relações interpessoais: a relação entre imperador e o súdito, a relação entre pai e filho, a relação entre homem e mulher, a relação entre irmão maior e irmão menor, e a relação de amizade. As quatro primeiras são hierárquicas, entre superior e inferior. Somente a amizade é a relação entre iguais.

    Castillo (1999) no livro “Educar para a amizade”, observa que uma das causas da desvalorização da amizade em nossa época é a trivialização desse conceito. O uso chistoso da expressão “meu amigo” para dirigir-se a pessoas com as quais não se sente nenhuma ligação pessoal ou que mal conhece, muitas vezes camuflando o interesse instrumental sobre a outra pessoa, contribui para esta confusão e desgaste do conceito de amizade.

    A verdade é que a amizade é sustentada por um sentimento espontâneo e desinteressado (consumatório) que funda um vínculo relacional entre dois seres humanos “bons” dispostos a dar o melhor de si para o outro e trocar impressões sobre como vê, sente e pensa a vida.

    Podemos afirmar que a amizade procura, sobretudo, sabedoria entre as pessoas. Sabedoria e não conhecimento, porque, se a amizade procurasse só conhecimento, as escolas e universidades seriam solos férteis para fazer amigos. E não são. A universidade contemporânea não é o espaço de sabedoria, nem do humor, nem da autenticidade, nem do amor, nem da felicidade. Ela é apenas um espaço de produção e transmissão de conhecimentos; nesse processo de produção as pessoas são mais ou menos obrigadas a relacionarem-se funcional e profissionalmente. O relacionamento é académico ou político-académico. As relações que ocorrem nas instituições e empresas são marcadas pela dessimetria dos cargos e funções, mas, eventualmente, é possível ocorrer uma ou outra relação que promete vir-a-ser amizade. Sobretudo nos dias de hoje, a universidade é, cada vez mais, um espaço de competição, onde o jogo de interesses é de fundo narcisista.

    Embora vivemos numa época em que é muito mais fácil estabelecer vínculos afetivos, existem pessoas que não suportam manter as amizades por muito tempo. Há aquelas que se vivem auto-enganando, ter muitos amigos com colegas, funcionários e alunos, e, na verdade, são relações sustentadas por contratos de trabalho, formal ou informal.

    Em termos lacanianos, onde existe o “discurso universitário” não pode existir uma verdadeira amizade. Como o professor está preso ao saber instituído, ao paradigma, que é um saber com referência à tradição do que é ensinado pelos “mestres”, pelos “grandes autores”, ele tende a reproduzir respostas padronizadas, quase mecânicas, usadas para escapar da escuta e do conhecimento do outro tomado como pessoa autêntica. Algo parecido também pode acontecer na posição do capitalista, do cientista, do médico, do religioso, do militante político: todos eles são impedidos pela sua condição de fazer autênticas amizades.

    Com o tempo, colhem-se frustrações sobre o “socialismo real” de vários países que teriam conseguido difundir um clima paranóico em que todos vigiariam em nome da suposta causa da igualdade operária. A burocracia socialista soviética, por exemplo, promoveu delatores, separou amigos e fundou uma falsa fraternidade, que, na vida quotidiana, gerou mais inimigos do que pretendia a intenção da teoria considerada “científica”.

    Embora não se compare a paranóia desencadeada pelo totalitarismo de direita e de esquerda com os problemas normais da democracia pluralista, é a liberdade que faz as pessoas aproximarem umas das outras e com confiança. Se o totalitarismo produz desconfianças e inimizades, a democracia “burguesa” tende a levar um considerável número de pessoas a viverem sozinhas, nas suas casas e apartamentos, por insegurança, ou porque o outro está mais ocupado em “mais-ter” do que “ser”. A indústria e o comércio aproveitam-se dessa condição de existência individualista para sustentar a vida solitária das pessoas levando a sua solidão, sustentando a indústria dos congelados, da entrega das pizzas ao domicílio, dos vídeos, os brinquedos que aliviam a carência sexual, os sites para encontros virtuais, os serviços telefónicos, etc.

    A sensação de violência das cidades do nosso planeta tem contribuído muito para aumentar o sentimento de solidão e a decréscimo na amizade. H. Arendt, no pós-2ª guerra, havia previsto o aumento da distância social e da desumanização. Não a desumanização efeito do totalitarismo, do capitalismo ou do terrorismo, mas outra, que atravessa invisível no nosso quotidiano banal e cujo sintoma nada investe para preservarmos as poucas amizades que restam.     A antiga  “agilidade em partilhar o mundo com os nossos amigos” é deslocada para viver de “pseudo-amigos”, ou seja, com um animal de estimação ou as relações humanas de faz-de-conta, são tentativas não conscientes de fazer um mundo com algum sentido para nele viver.

    Como existe muita gente no mundo, e como as relações humanas parecem abundantes em quantidade de encontros casuais e de bens de consumo, as pessoas hoje têm a sensação de auto-suficiência, do tipo “eu não preciso dela para viver”. No entanto, as possibilidades de relações humanas, necessariamente, não se transformam em qualidade efetiva ou relações de amizade verdadeira, como prevê a dialética. O espírito humano contemporâneo tornado “líquido” leva-o a conceber a amizade como mais uma relação instrumental, só para ser usada, consumida, e logo descartada.

    Infelizmente, a amizade morreu como ocupação principal das pessoas em busca pela sabedoria e felicidade. Hoje, estamos tão ligados às instituições e às suas obrigações burocráticas impostas pela “qualidade total” das empresas; estamos tão presos a uma ética do lucro e distantes de uma ética da solidariedade, que nos faz cegos para o valor da amizade e da busca da sabedoria.

    A amizade concebida pelos gregos morreu para dar lugar a relações pragmáticas, impessoais, efêmeras e superficiais. É verdade que ainda existem amizades que se sustentam em termos consumatórios, apesar da ambiência social negativa e do pseudo argumento de falta de tempo ou de condições concretas para verdadeiros encontros. O esvaziamento da amizade consumatória parece estar fazendo surgir um outro tipo de relação mediada por interesse de luta por uma causa comum, ou contra um inimigo comum, ou de união para celebrar um acontecimento solidário, ou para fazer de conta que, nesse mundo sem coração, só existe amizade mediada por uma causa do bem. Ou seja, temos que nos contentar com uma “quase-amizade”, um fingimento de amizade, com aqueles que vivem sob o mesmo guarda-chuva do trabalho, ou que empreendem connosco um projeto de estudo, ou para jogar à bola num clube, ou se ligar aos irmãos de uma fé “x” ou igreja “y”, porque devemos fazer o que estiver ao nosso alcance para evitar que as pessoas fiquem cada vez mais individualistas e o mundo cada vez mais sombrio e sem coração.

 

 

Liliana Bonito, Nº13 12ºA